quinta-feira, 19 de junho de 2008

O guardador de sementes*

Tinha na mão três sementes de abóbora chila (gila).  Parecia-lhe estranho que agora estava em sua mão, na enxada e no poder da terra o futuro deste legume.  Sabia que em 2040 as últimas abóboras chilas eram conseguidas em estufas do Estado para a manutenção da biodiversidade mínima obrigatória em qualquer país da Eurásia.  Infelizmente, um vírus produzido por um grupo radical resistente à recém adesão da Rússia e China à comunidade, pôs fim ao projecto no final do mesmo ano.  Não compreendia porque destruir o futuro de espécies em extinção poderia ser uma forma de luta contra a inclusão de novos países a uma comunidade de cooperação semi-global.  Alguns o chamavam guardador de sementes, em alusão à antiga e rara tradição do pastorio.  Sabia que era mais do que isso, pois manter suas sementes não era como conduzir um rebanho, representava o futuro, a continuidade de um sonho de família, desde que seu pai havia abandonado a vida de especialista em mãos e pés de andróides para dedicar-se à uma atividade de maior contato com a natureza.  Plantava agora num terreno cedido pelo Estado para fixação de pessoas que se dedicassem a restituir vida à paisagem semi-deserta de todo o interior do país.

A mão suava.  As sementes estavam húmidas, anciosas de terra. Abonou a cabeça, tomou a enxada com o braço esquerdo, distribuindo as sementes enquanto fechava os pequenos buracos na pouca terra da sua estufa. Sabia que quando saísse estaria muito mais frio, porque a região que escolhera ainda era bastante afetada e pouco povoada.  Veria apenas a luz da lua crescente a iluminar os raros arbustos que ousavam romper a terra feita em areia endurecida.  O guardador de sementes parecia satisfeito, mesmo que três sementes fossem apenas um começo, estava a fazer a sua parte.  Quem sabe sua filha não poderia um dia comer o doce que sua bisavó contava que a mãe lhe fazia com nozes?

 

* Ficção que tomou como mote a reportagem feita pela SIC no programa Terra em Alerta, sobre o trabalho da Associação "Colher para semear".

1 comentário:

tork disse...

história interessante...